INTRODUÇÃO
Neste primeiro artigo, intenciono apresentar três conceitos importantes que nortearão os escritos deste blog: hermenêutica, linguística e exegese; por fim, trato da relação entre as três áreas.
A PRIMEIRA MULHER
No início do capítulo primeiro, Anthony Thiselton (2009) fornece a seguinte definição de hermenêutica:
“A Hermenêutica explora como lemos, entendemos e lidamos com textos, especialmente aqueles escritos em outro tempo ou em um contexto de vida diferente do nosso. A hermenêutica bíblica investiga mais especificamente como lemos, entendemos, aplicamos e respondemos aos textos bíblicos textos.”[1]
Disso se depreende o seguinte.
Primeiro, hermenêutica lida com a prática de leitura de textos. Pode parecer redundante falar em textos escritos, mas não o é, pois, em linguística, por exemplo, texto pode ser escrito ou oral. Por ora, atentemo-nos à leitura. Ela é um processo interpretativo que se faz por inferências, sendo a conclusão tirada das informações textuais (e.g, gramática) e do conhecimento de mundo do leitor (enciclopédico).
Segundo, hermenêutica trata do estudo da nossa cognição – como entendemos. Partindo dos estudos da linguística cognitiva, a cognição, em linhas gerais, pode ser entendida como a capacidade humana da linguagem, a criatividade, o uso de metáforas e metonímias, a mistura entre experiências da realidade (blending), as implicaturas textuais (e.g, inferências, pressuposições). Neste blog, as abordagens da linguística textual e cognitiva serão adotadas no estudo do texto, o que vou desenvolver em outros textos.
Terceiro, hermenêutica se refere ao estudo do texto, sendo este compreendido como antigo e escrito em outra cultura. Neste aspecto, texto o é de um passado (bíblica, grega, latina etc) em dada cultura diferente da nossa. Neste sentido, pode-se pensar nos textos bíblicos, filosóficos (Platão), literários (comédia e tragédia greco-romanas).
Quarto, no caso da hermenêutica bíblica, tomando como base os pontos anteriores, destaca-se por ter como objetivo a aplicação do texto bíblico na vida dos seus leitores. Assim ela não é uma disciplina fechada no texto (metáfora do texto como mundo), antes se abre para o mundo, na tentativa de compreendê-lo e viver nele segundo os princípios cristãos. A relação do texto com o mundo é importante, principalmente considerando que o segundo é a base do primeiro. O texto está dentro do mundo e não o contrário. Eis a base metafísica para lidar com textos. Primeiro Deus criou o mundo, depois o texto (revelado).
A SEGUNDA MULHER
Já a Linguística é a ciência da linguagem, que busca também descrever línguas e textos. A linguagem é a capacidade sociocognitiva de nos orientamos por meio dos signos. O signo é composto destes elementos: significante, significado e referente. Significante é o som de um signo. Por exemplo, cada palavra é composta de um conjunto de sons. O significado é o conteúdo e suas variadas formas de apresentá-lo. Por exemplo, os evangelhos sinópticos tratam do mesmo conteúdo (morte e ressurreição de Cristo) sob perspectivas distintas considerando a intencionalidade do produtor do texto. O referente é o conteúdo da experiência humana. No caso de Cristo, o fato da encarnação é o referente que fundamenta o discurso dos evangelhos.
O significado tem três facetas: perspectivização conceptual, as variadas maneiras de apresentar um conteúdo; interação, como esse conteúdo posto sob dada perspectiva influencia o leitor buscando mudar o pensamento, comportamento deste ou levá-lo a agir de determinada maneira. Por fim, o texto, como por meio da gramática a perspectivização conceptual e a interação são apresentadas.
A TERCEIRA MULHER
Por sua vez, exegese é um termo que muito se assemelha à hermenêutica, pois ambas lidam com a interpretação de textos. De forma geral, a distinção entre ambas pode ser explicada pela exegese tratar da prática da interpretação textual, ao passo que a hermenêutica lida com os princípios de interpretação tais como as noções texto, autor e leitor. A hermenêutica se interessa por investigar o que é um autor e qual sua influência ou não no processo de interpretação. Abordagens hermenêuticas, assim como literárias, variam de acordo com sua ênfase no texto (estruturalista), no leitor (teoria da recepção), no autor (bíblica). Todavia, cada uma dessas abordagens é um lado do quadrado. Eis que todo ato de interpretação é enxergar em perspectiva.
Voltando à exegese, pode-se dizer que essa é o contato direto com o texto. É a prática de interpretação textual. É preciso tomar cuidado para enfatizar o que se diz sobre o texto (e.g, comentários exegéticos) em detrimento do estudo direto do texto (intuição, percepção do objeto de observação). Eis que é não se pode enfatizar o discurso no lugar da realidade.
DA RELAÇÃO ENTRE AS TRÊS MULHERES
Uma das diferenças entre hermenêutica e linguística está em que esta trata da oralidade, ao passo que aquela, da escrita. Jean-Michel Adam, por exemplo, critica a distinção entre literatura e linguística em que esta trata da fala enquanto aquela, da escrita. Comparativamente, hermenêutica estaria mais associada aos estudos literários do que à linguística. Não por acaso, um estudo literário de um texto se vale da hermenêutica. Porém, a distinção entre fala e escrita tem sido cada vez mais criticada em linguística. Antônio Marcuschi é um dos linguistas que argumenta a favor da continuidade entre escrita e fala numa gradiência. Tomando isso como base, pode-se pensar numa relação de gradiência entre hermenêutica e linguística mediada pela prática de interpretação, a exegese.
Outra diferença entre hermenêutica e linguística está na noção de texto. Para a primeira, o texto é marcado pela escrita. Já para a segunda, uma fala pode ser considerada um texto, isso porque o texto não seria só o elemento linguístico (e.g, o estudo da gramática).
Em linguística, todo e qualquer texto tem os seguintes elementos: linguístico, cognitivo, social e interacional. Linguístico, os elementos gramaticais (palavras e estrutura sintática). Cognitivo, a forma de compreender as coisas no mundo por meio da linguagem. Social, as relações de poder entre as pessoas em certa comunidade. Interacional, as relações comunicativas e argumentativas da vida em sociedade nas variadas situações de uso (registros).
A articulação entre hermenêutica, linguística e cognição se dá considerando a noção de texto. Porém, este não se dissocia de cultura e cognição. Texto, cognição e cultura – elementos do estudo da hermenêutica – também o são da linguística e da exegese. Qualquer texto expressa dada cultura dialogando com outros saberes (discursos) e textos (intertextualidade), de modo a requerer do leitor uso da cognição (inferência, metáfora, metonímia, gradiência etc). Por exemplo, os textos do Antigo Testamento em Levítico sobre os sacrifícios são designados de texto de “como-fazer” (how-to-do) por Longacre. São textos que dizem como um judeu deveria proceder na execução do sacrifício.
Outra relação é que as três lidam direta ou indiretamente com as concepções de autor, texto e leitor. Autor (produtor do texto) é aquele marcado pela intencionalidade com seu projeto de dizer (cf. linguística de texto); em virtude disso, o produtor textual fornece ao leitor pistas para que este faças as inferências na hora da compreensão textual. O leitor é aquele caracterizado por seu conhecimento de mundo, dentro de um contexto sociocultural, cujas habilidade cognitivas o auxiliam na compreensão do texto. O texto é um evento comunicativo de marcas linguísticas, sociais, culturais e interacionais.
Outra metalinguagem[2] relevante para a questão acima é o contexto. O contexto pode seguir duas direções: do texto à cultura e da cultura ao texto. Por meio do texto é possível entender uma cultura. Por exemplo, os provérbios expressam a visão sapiencial do mundo antigo. Ou da cultura ao texto, identificando a estrutura de um texto em razão da sociedade da época. Por exemplo, quando fala da família, Paulo toma como base a estrutura da família romana: senhor da casa, esposa, filhos e escravos, mas reconfigura a partir da cristologia, sendo Jesus o cabeça do lar cristão, a quem todos devem prestas contas.
Porém, é preciso tomar o contexto num sentido mais amplo, pois nem tudo da cultura é relevante para a interpretação textual. Só é proeminente aquilo que os participantes da interação (e.g, produtor do texto e leitor), mediados pelos aspectos linguísticos do texto, tomam como base para a comunicação, que, por sua vez, valem-se dos implícitos, os conhecimentos que estão subentendidos, aos quais aqueles aspectos linguísticos funcionam como indícios, pistas. Dito de outra forma, a relação, por exemplo, entre texto e cultura é metonímia: o texto “fala” em parte, pois a outra parte se apresenta no mundo e nos conhecimentos dos participantes da interação.
Dito de outra forma, o conhecimento do mundo é a base cognitiva para a interpretação textual. Ao escrever “conhecimento do mundo”, estou lidando com subjetividade (‘conhecimento de um indivíduo’) e objetividade (‘o mundo concreto que existe fora da minha mente). Este conhecimento de mundo é compartilhado entre as pessoas. Eis a noção de intersubjetividade (interação entre os indivíduos).
O conhecimento do mundo é adaptado conforme os objetivos dos participantes. Por exemplo, os evangelhos tratam do mesmo tema (morte e ressurreição de Jesus), mas o fazem de formas distintas. Ou seja: o significado quer dizer as variadas formas de descrever sobre a experiência com o alvo de influenciar o outro. Eis então o contexto como modelo mental – o conjunto de conhecimentos organizados na nossa mente, aos quais os elementos linguísticos apontam metonimicamente tomando como base o mundo concreto.
CONCLUSÃO: O MUNDO E SEUS FILHOS – TEXTO, CULTURA E COGNIÇÃO O mundo é a base concreta a partir da qual se articulam texto, cultura e cognição. Estudar essa relação por meio da linguagem só é possível entendendo o mundo como mediador entre essas três áreas de estudo. Uma hermenêutica que desconsidera o mundo tende a tratar o texto como algo autônomo, o que não pode ser, visto que tudo que existe no tempo é relativo. Portanto, o texto é relativo à sua cultura e cognição dos seus envolvidos. E mais: o significado do texto é relativo à sua estrutura dentro do mundo. Textos não são autônomos assim como Adão também não o era.
[1] Hermeneutics explores how we read, understand, and handle texts, especially those written in another time or in a context of life different from our own. Biblical hermeneutics investigates more specifically how we read, understand, apply, and respond to biblical texts. In: THISELTON, Anthony. Hermeneutics: an introduction. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Co, 2009.
[2] Metalinguagem são os termos técnicos de uma ciência.
Muito bom ,a explicação
Obrigado, Maristela.
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