Erros de interpretação decorrem do desconhecimento de alguns saberes[1] sobre a linguagem. Cá apresento cinco desses desconhecimentos. Mas antes é preciso fazer três considerações.
Primeira, estou partindo do contexto de leitores de língua portuguesa brasileira, o que significa dizer que esse leitor não tem necessariamente um conhecimento de línguas bíblicas, antes interpreta a Bíblia com base na língua portuguesa.
Segunda, tendo em vista ser o português a língua desse leitor, é necessário que ele a conheça. Eis o problema, o analfabetismo funcional. Ou seja: boa parte dos brasileiros não sabe usar a gramática para interpretar textos. Fazem leitura sem entender o significado.
Terceira, a Bíblia é composta de vários livros distintos, com alvos distintos e formatos também distintos. O que significa dizer que, apesar de existirem princípios universais que se aplicam a quaisquer tipos de texto, cada livro terá um tipo de texto e um gênero discursivo específicos. Feitas essas observações, eis cinco elementos desconhecidos dos intérpretes da Bíblia que podem levar a erros hermenêuticos.
1. Cada texto se veste de uma cultura: gênero[2]
Desconhecer os gêneros do discurso – gênero é uma estrutura esquemática de cultura. Cada gênero faz parte de uma cultura e não necessariamente de outra. Hoje não temos o gênero profecia, o que havia nos tempos antigos. Por esquemático, quero dizer o conhecimento que o gênero expressa. Por exemplo, o gênero lei, como a lei de Moisés, tem como conhecimento a sabedoria de Deus. No mundo ocidental atualmente, o gênero lei do direito não tem essa acepção. Por exemplo, a lei se baseia nesta tríade: contexto, valores e norma[3]. O contexto é o que se está em discussão na sociedade (e.g, aborto). A norma são os valores expressos por cada grupo. Há os pró-aborto e os pró-vida (contra aborto). A norma é o que se estabelece como lei. Enquanto a lei mosaica tem caráter descritivo, a ocidental tem valor prescritivo, expressando cada uma sua cultura.
2. Cada texto nasce com um corpo
Desconhecer os tipos de texto – os gêneros têm tipos de textos, que são categorias. Há os seguintes: narrativo, expositivo, descritivo, injuntivo[4]. O narrativa tem como foco o movimento das ações pelo tempo, por isso são usados predominantemente verbos de ação. A exposição é desenvolvimento de ideias. O descritivo é a apresentação das características de algo ou alguém, predominando verbos estativos (‘era noite’). A injunção[5] é levar alguém a fazer ou não algo, havendo ênfase em verbos no imperativo.
Além disso, um gênero terá um tipo de texto predominante, embora ele possa se valer de outros. A lei de Moisés é composta de narrativa predominantemente (e.g, peregrinação no deserto), mas é possível encontrar exposição (e.g, as ilustrações dos dez mandamentos em possíveis situações da vida), descrição (e.g, os sacrifícios em Levítico, os objetos de construção do templo), injunção (e.g, os dez mandamentos). Em Gálatas, que é gênero carta, o tipo de texto é exposição (de ensino ou problema), mas Paulo usa também o tipo de texto narrativa (cf. capítulo 2.1-13) para seus alvos argumentativos.
3. Cada texto namora pelo menos uma língua
Desconhecer português (gramática) – visto que a interpretação de texto realizada pela pessoa se dá na sua língua, é preciso que ela a domine. No nosso caso é o português. Com os estudos linguísticos, existem vários tipos de gramática: gerativa, funcional, cognitiva, discursiva e normativa. A última é a que “estudamos” na escola, e ninguém aprende.
Antes de se aventurar em aprender qualquer uma das quatro primeiras gramáticas, é preciso aprender antes a normativa, pelo menos naquilo que é importante para a interpretação de textos, que é a morfossintaxe.
Morfossintaxe significa dizer que a gramática compreende o aprendizado das palavras (morfologia) e suas relações (sintaxe). Aprender as palavras significa saber isto: a forma, que são as classes de palavras (substantivo, adjetivo, advérbio, pronome etc.), a semântica, o significado de cada dessas classes de palavras e, por fim, a função, como essas palavras se juntam a outras (combinação) para formarem unidade chamadas de sintagmas, como “o menino alto viajou para a Alemanha”, em que “o menino alto” é um sintagma, uma unidade de significado cuja função é a de sujeito de “viajou para a Alemanha”.
4. Cada texto dança conforme a música
Desconhecer o português no seu contexto de uso – a gramática não é uma coisa autônoma (do significado e do contexto) que tem de ser estudada por ela mesma. Exemplifiquemos com o uso do imperativo[6]. Não se pode interpretar o uso gramatical desse imperativo como se fosse ordem. Nas suas cartas, Paulo costuma usá-lo não como ordem, mas no sentido de orientação. Por exemplo, “alegrai-vos no Senhor. Digo outra vez, alegrai-vos” (Filipenses 4.1ss). Não faz sentido dizer que Paulo está dando uma ordem para que seus leitores a cumpram. Esse não é o uso do imperativo. Nas seções parenéticas (exortação)[7], Paulo usa imperativo para influenciar seus leitores a terem determinadas ações e não outras (no caso de proibições, que são o imperativo mais partícula negativa). Em suma, é preciso saber usar a gramática na sua relação com o significado e o contexto.
Concluindo
As habilidades (competências linguísticas) acima são basilares na interpretação de qualquer texto. Ainda mais importante é compreender em que consistem os textos e o que é a gramática. Esta não é um conjunto de regras que devam ser memorizadas, antes é a união entre dois eixos: o fonético – os sons – e o semântico – significado cujo objetivo é ser aos leitores (no nosso caso) uma ferramenta para interpretação de textos. Estes, por sua vez, não são um conjunto de palavras e orações, antes são instrumentos usados pelas pessoas dentro de uma cultura, levando em conta fatores linguísticos (gramática), cognitivos (metáfora, metonímia, abstração, blending etc.), sociais e discursivos (relações de poder).
[1] Em Linguística, chamamos de competências; ou seja: os conhecimentos que usamos na interpretação e produção textuais; e.g., competência pragmática – inferências, pressuposições, atos de fala etc.
[2] Em outro texto, explicarei o conceito de discurso. Por ora, entendamos discurso como a língua dentro de contexto cultural de uso da língua.
[3] Veja: Reale, Miguel. Pluralismo e Liberdade. São Paulo: Expressão e Cultura, 1998.
[4] Essa categoria não é exaustiva.
[5] Nas cartas de Paulo, há a seção de exortação em que o escritor orienta seus leitores a determinadas ações ou a rejeitarem outras. Para isso, ele faz uso de verbos no imperativo presente a fim de chamar seus leitores à ação (call to action).
[6] No grego, um ponto distintivo dessa língua é o aspecto verbal. O imperativo pode estar no aoristo ou no presente. Nas cartas do Novo Testamento, os imperativos no presente são usados nas seções de exortação.
[7] São as que, no texto, o autor orienta seus leitores a tomarem determinadas atitudes. É a parte “prática” do texto com aplicações para a vida dos leitores. Veja: Gálatas 5.13-6.10; Efésios 4.1-6.20; Colossenses 3.14.9. Esta divisão não está seguindo o texto grego, mas a tradução ACF.
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