A hermenêutica bíblica é bastante marcada pelos estudos de palavras. Por esse motivo, a exegese – a prática da interpretação do texto – é influenciada a seguir uma abordagem mais lexical[1] ou oracional[2]. Carson, no clássico Exegetical fallacies, apresenta muitos usos indevidos dos estudos lexicais. Neste artigo, pretendo explorar alguns outros problemas hermenêuticos do ponto de vista da linguística.
1. Confundir palavra com conceito
Palavra e conceito não são a mesma coisa. O conceito é o mesmo que significado – partindo das nossas experiências concretas no mundo, formamos imagens dessas experiências em nossas mentes, expressando-as de modos alternativos. Por exemplo, podemos falar da mesma experiência sob várias perspectivas. Eis alguns exemplos:
“As armas tiram vidas”.
“As armas salvam vidas.”
O objeto existente na realidade, armas, foi colocado em duas perspectivas: negativa e positiva, respectivamente. Não mudamos a realidade usando a linguagem, mas por meio do uso da língua podemos manipular nossa percepção da realidade.
Por sua vez, palavra é uma forma com som e significado (conceito). A forma diz respeito à sua classe, se é substantivo, adjetivo, advérbio, pronome, preposição etc. O som é sua parte acústica. O significado trata do conceito (ou conceitos) a que essa palavra remete.
Quanto ao primeiro, o conceito [SALVAÇÃO][3] pode se expressar por meio de várias palavras, tais como ‘salvação’, ‘justificação’, ‘redenção’. Ou mesmo por expressões como ‘nova criação’, ‘novo homem’, ‘novo nascimento’.
Quanto ao segundo, uma palavra pode expressar vários conceitos. A palavra ‘salvação’, no Antigo Testamento, pode expressar os conceitos [SER SALVO DA MORTE], [SER SALVO DOS INIMIGOS], [RECEBER LIBERTAÇÃO DE DOENÇA].
Além disso, em textos, um conceito pode se apresentar sem ter uma palavra para isso. É o que acontece em narrativas. Paulo usa a narrativa de Gálatas 2.1-13 para falar do conceito [JUSTIFICAÇÃO]. Nessa passagem, o apóstolo não usa a palavra ‘justificação, porém o conceito está lá. As palavras são apontadores de conceitos. É como se estes fossem a alma; aquelas, o corpo, numa unidade.
2. Pensar que uma palavra tem apenas um significado
Erro comum é considerar que uma palavra tem correspondência de um-para-um quanto ao significado: pensar que para cada palavra existe um significado específico. Essa visão traz a noção de que as palavras têm significados estáveis. Um erro bem como é com a palavra agápe[4], entendido como amor sublime, ao passo que filéo é o amor entre irmãos.
Todavia, em II Samuel 13.1, é nos dito que Amon amou Tamar:
καὶ ἠγάπησεν αὐτὴν Αμνων υἱὸς Δαυιδ
“E amou-a Amon, filho de Davi”.
O verbo ἠγάπησεν é ἀγαπάω (‘amo’), cuja forma nominal é ἀγάπη (agape). O amor de Amon era desejo sexual ao ponto de ele cometer incesto. Palavras têm significado(s) em contexto de uso e de cultura.
3. Pensar que a mesma palavra tem o mesmo significado usado por um autor
O autor pode usar a mesma palavra com sentidos diferentes. Por exemplo, em Gálatas Paulo usa a palavra ‘carne’ (σάρξ) (5.16) e (6.12) em acepções distintas. No primeiro caso, ela está associada a ‘obras da carne’ (τὰ ἔργα τῆς σαρκός), ao passo que na segunda ‘aparência da carne’ (εὐπροσωπῆσαι ἐν σαρκί ‘ostentar-se na carne’).
Em ambos os casos, ‘carne’ significa as ações humanas. Uma tradução literal seria ‘corpo’. Isso porque nossas ações só acontecem por termos um corpo. Mas fiquemos com a palavra ‘carne’ comumente traduzida no português.
Assim ‘carne’, as ações humanas’, ganha nuances diferentes (perspectivas de significado) nos contextos de uso acima. Em 5.19-26, Paulo a utiliza no plano da ‘ética’ cristã, em que essa se caracteriza pela orientação escatológica da bênção presente do Espírito. ‘Carne’ é usada para indicar as ações humanas em estado de rebeldia contra Deus. ‘Carne’ não é tanto que nosso corpo tenha pecado. Antes é uma metáfora para nossa orientação de rebeldia diante de Deus, um estado de rebeldia, que se expressa por nossas ações. Isso já faz cair por terra aquela ideia “odiar o pecado e não o pecador”. Os pecados apresentados na passagem são mais ilustrações do que uma lista exclusiva de pecados abomináveis.
Em 6.11-18, Paulo usa ‘carne’ (‘ostentação da carne’) como recategorização da vanglória dos seus adversários. Enquanto em 5.19 Paulo está se direcionando mais aos seus leitores cristãos, em 6.12 ele está criticando seus inimigos, judeus que se exaltavam em sua nacionalidade e ‘exclusividade’ como povo da aliança mosaica. Aqui, ‘carne’ encapsula os aspectos nacionais e pactuais dos judeus. Lá, encapsula s ações orientadas à rebeldia contra o Deus julgador.
Mudando a perspectiva, cria-se novo significado. Ou: significado é colocar as experiências em perspectiva.
4. Desconsiderar que as palavras são acomodas quanto ao seu significado na sintaxe de uma sentença
Um exemplo do Antigo Testamento ilustra o que quero dizer. Eis Provérbios 16.32:
ט֤וֹב אֶ֣רֶךְ אַ֭פַּיִם מִגִּבּ֑וֹר וּמֹשֵׁ֥ל בְּ֜רוּח֗וֹ מִלֹּכֵ֥ד עִֽיר׃
Numa tradução bastante literal, eis:
“Melhor longa face (nariz) do que o forte de guerra – e o que domina seu espírito – do que quem derruba uma cidade”.
Essa tradução não faz menor sentido para nós, posto que a palavra ‘face’ (‘rosto’, ‘nariz’) se encontra na cultura antiga em que a forma de falar da ira se dá por relacioná-la com a face e o nariz. O hebraico tem oito palavras para expressar ira. O rosto e o nariz são partes concretas usada para expressar sentimentos. As culturas costumam usar partes do corpo para tratar de conceitos abstratos.
Uma melhor tradução é “demorado em se irar” ou “paciência”, “longanimidade”. O conceito de אַף não pode ser entendido na relação com outra pessoas: irar-se com outra pessoas. A ideia é ter autocontrole, domínio de si.
O sentido da palavra אַף é adaptado considerando sua relação na combinação com as outras palavras. No caso do hebraico, a segunda parte do verso tende a especificar o sentido do primeiro verso. Ou seja: “o que domina seu espírito” ajuda a entender “melhor o tardio em irar-se do que o forte de guerra”.
Observe também o contraste: não controlar o interno, mas dominar o externo. Aqui é uma metáfora espacial (dentro vs. fora).
Em suma, temos o princípio da acomodação – o significado de uma palavra se acomoda ao das demais e vice-versa bem como à estrutura sintática, como as palavras estão combinadas.
Conclusão
O estudo de palavras precisa levar em conta muitos fatores, dentre eles, o de que o significado não é apenas o conteúdo mas também como se fala desse conteúdo sob certa perspectiva. A forma de descrever um conteúdo considera a cultura na qual a palavra está inserida e como os seus participantes usam-na.
Além disso, palavras e conceitos se relacionam de duas formas: uma palavra pode expressar vários conceitos, e um conceito pode se valer de muitas palavras. Essas relações não são arbitrárias, antes são motivadas por nossas ações no mundo, que são dão por termos um corpo físico.
Há muita coisa a dizer, e difícil de explicar. Existe muito a escrever sobre o estudo de palavras neste blog.
[1] O estudo das palavras e seus significados.
[2] Relativo ao estudo da oração, que são as palavras combinadas umas com as outras tendo pelo menos um verbo.
[3] Nos estudos da linguística cognitiva, abordagem que tomo como base, o conceito é posto em caixa alta.
[4] Não estou aqui usando transliteração com um rigor metodológico.
Artigo muito bom. Linguística no “mêi” da canela.
Foi boa Cândido. Este é um dos alvos: apresentar a linguística voltada ao estudo do texto.
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