Chego ao último texto sobre erros hermenêuticos. Neste artigo lido com o uso de métodos, e a absolutização desses, deixando de considerar que o significado é uma cadeia, uma trama de variadas relações sob várias perspectivas.
Confiar mais no método do que na intuição
É o uso de termos técnicos usados na hermenêutica, mas que podem ser feitos sem a sensibilidade ao texto. É tentar colocar um método hermenêutico para interpretar o texto, sem perceber as nuances e facetas do texto.
Um exemplo disso é com as chaves hermenêuticas. São assim popularmente chamados os vieses teológicos de interpretação tais como aliancismo e dispensacionalismo, por exemplo. É preciso se atentar ao texto no sentido de que certa metodologia ou visão hermenêutica não necessariamente é a melhor chave para compreendê-lo.
O linguista Ferdinand de Saussure diz que não é o objeto que cria o ponto de vista, antes é o ponto de vista que cria o objeto. O que ele quer dizer com isso é que toda ciência cria seu objeto de estudo a partir de um ângulo de análise. Por implicação, qualquer ciência nunca é uma ciência de um fato concreto (ou seja: da realidade), mas de uma abstração (recorte) da realidade. Sendo a hermenêutica uma ciência, ela parte de algum ponto de vista sobre o texto, nunca considerando este como um “fato concreto”. Aliancismo, dispensacionalismo e qualquer outra chave-hermenêutica são pontos de vista sobre o texto. Todavia, pode ser que este não se “encaixe” no ponto de vista da chave. Dito de outra maneira, é preciso que o intérprete esteja atento para não moldar o texto a uma abordagem hermenêutica. Um texto pode, se ele o permitir, ser abordado por vários pontos de vista, que são diferentes esferas da realidade (e.g, físico, espaço-temporal, legal, social, político, ético, pístico etc).
A técnica com defeito de percepção só leva a desastres. A primeira deve ser um instrumento para a segunda. Aqui reside a distinção entre mentalidade teórica (ciência) e experiência ordinária (percepção, intuição ou senso comum) usada por Herman Dooyeweerd. Para atravessar a rua, ninguém usa uma teoria matemática ou física para calcular a distância entre o carro vindo de longe e sua posição. Nossa percepção (intuição) consegue captar se podemos passar ao outro lado sem sermos atropelados. Nossa percepção não erra facilmente como imaginamos. Se errasse, não conseguiríamos sequer ir para o outro lado da rua sem sofrer um acidente. Dito de outro modo, a hermenêutica como ciência não tem o alvo de acabar com nossa intuição, antes deve servir para aprimorá-la.
Tornar absoluto o que é relativo
Dooyeweerd diz, com razão, que tudo o que é temporal é relativo. Disso se pode afirmar que a verdade é relativa, o não significa dizer que ela seja randômica. Vejamos a relatividade da verdade. O conceito [PAI] só pode significar algo quando da sua relação com outros conceitos tais como [MÃE], [ESPOSA], [FILHO] etc. A verdade do conceito [PAI] é, pois, relativa a outros conceitos[1]. Sendo a verdade relativa, isso quer dizer que não se pode analisar o significado de uma palavra ou texto, de modo isolado. Quer dizer também que um texto pode ser observado sob várias perspectivas que lhe são relativas. Uma tendência com os textos é pensar que eles só podem ser interpretados a partir de uma perspectiva, como observado acima quanto ao uso do método. Ao absolutizar um ponto de vista de interpretação, incorremos num erro de apreensão da realidade.
Desconsiderar a relação parte-todo
A forma de evitar a absolutização do texto é considerar a relação metonímica. Ou: o uso da razão. Costuma-se imaginar que razão é o uso da lógica. Não é apenas isso. A razão envolve várias operações: comparação, metonímia, metáfora e outras estudadas pela ciência cognitiva e linguística cognitiva.
O termo ‘razão’ significa a relação entre parte-todo (metonímia). O uso da razão é entender a coerência entre as partes na sua relação com o todo. Aplicado ao texto, isso quer dizer que a análise de qualquer parte de um texto preciso considerar suas relações com as demais partes do texto, tais como palavras, parágrafo e texto (tema, o tópico discursivo). Por exemplo, a palavra “avareza” em Colossenses 3.5 (καὶ τὴν πλεονεξίαν, ἥτις ἐστὶν εἰδωλολατρία – “a avareza, que é idolatria”). Tomada isoladamente, ela quer dizer “o desejo desenfreado por dinheiro”. Todavia, esse não é seu significado no texto. É usada como “desejo desenfreado por relações sexuais ilícitas”. A oração relativa “que é idolatria” ajuda a entender que Paulo associa “avareza” com “idolatria”. Essa palavra geralmente é usada pelo apóstolo no contexto sexual (cf. Rom. 1). Além disso, as palavras que circundam “avareza” também estão na esfera sexual. Quanto ao parágrafo, ela está na seção de exortação, usada para orientar a conduta dos leitores. Essa seção é um dos componentes do texto.
Dito de outra forma, é examinar um elemento do texto considerando todas as suas relações com as outras partes do texto. Por exemplo, se você for analisar uma palavra, é preciso considerar estes elementos:
- A semântica (significado);
- Sua função – relação com outras palavras (sintagma)
- Sua função no texto (coesão, referenciação, metáfora, metonímia)
- Contexto e cultura.
Não conhecer a semântica
Falando em semântica, essa é o estudo do significado. O problema hermenêutico é pensar que somente as palavras têm significado. A gramática também tem significado. Ou melhor: a gramática significa. Por exemplo, o imperativo tem como semântica indicar direção e vontade. Quem usa o imperativo (e, g. Paulo) está expressando uma vontade, a de que certa ação seja realizada pelos seus leitores. A direção é a perspectiva do leitor, em que quem uso o imperativo o faz buscando levar aquele a realizar uma ação específica. Já o uso do presente sinaliza que a direção dada pelo imperativo é de muita importância.
Chegando ao fim
Considerando o que foi escrito acima, a semântica é uma cadeia de significados, um conjunto de relações, relações essas que são do tipo metafórico, metonímico, mesclar conceitos. Tudo isso dentro de uma cultura. Nessas relações, o significado de uma palavra será adaptado quando ligada a uma outra palavra dentro de um texto, com base nas experiências a que as palavras remetem. Enfim, o significado no texto é uma relação de parte e todo dentro de uma cultura específica.
[1] No livro eletrônico que está prestes a ser lançado, trato do estudo das palavras e conceitos no grego do Novo Testamento.
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