ASPECTO VERBAL, PROEMINÊNCIA E NÍVEIS DE ANÁLISE LINGUÍSTICA

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como finalidade responder, ainda que parcialmente, a uma dúvida que me foi feita a respeito da análise do aspecto estativo (perfeito) no grego antigo. A pergunta era se, ao encontrar uma forma do perfeito, a proeminência (ou seja: o destaque maior chamando a atenção do leitor) está no próprio verbo, na oração em que o verbo se encontra ou no contexto maior do texto.

Três observações são necessárias. A primeira é em que categoria se encontra aspecto verbal. Alguns estudiosos o colocam como categoria lexical[1]. Daí que temos o conceito de aspecto lexical como durativo, estativo, iterativo etc. Por outro lado, há os que o categorizam como categoria semântica associada à morfologia. Nessa abordagem, aspecto como categoria semântico-morfológica sinaliza que determinada desinência indica aspecto perfectivo, imperfectivo ou estativo. É a visão que sigo.

A segunda é que o conceito de proeminência, nos estudos do texto, está dentro da categoria coerência[2]. Logo, a proeminência é um fenômeno da ordem do texto[3]. Por outro lado, nos estudos da linguística cognitiva, a proeminência é uma categoria semântica relacionada à noção de perspectivização conceptual (construal)[4].

A terceira é que a análise de um item de uma língua tem vários níveis de análise linguística. Por exemplo, o nível fonético/fonológico, o morfológico, o lexical, o sintático e o discursivo-textual voltado à pragmática. Eu abordo uma visão em que esses níveis de análise formam um contínuo, e que a discriminação de níveis é mera arbitrariedade que serve a determinados objetivos metodológicos do pesquisador, mas que, no uso real da língua, esses níveis se apresentam de modo simultâneo. Todavia nossa percepção só capta certos dados da realidade e não a realidade como um todo, embora exista a unidade do real sem a qual as partes não podem ser entendidas. Feitas essas considerações, vejamos o aspecto verbal sob alguns níveis de análise.

1. NÍVEL LEXICAL

Neste nível, estamos liando com o verbo considerado como uma palavra. Isso significa dizer que ele é composto de um polo fonológico (sons) e um semântico (significado). No semântico, faço a distinção entre o conteúdo (referencial) e a forma com que o conteúdo é transmitido (perspectivização conceptual)[5].  Neste nível lexical, vou me deter somente ao conteúdo lexical da palavra.

No caso dos verbos, eles são de dois tipos gerais, para meus alvos aqui: ações (matar, justificar, brincar etc.) e estados (ficar, permanecer etc). Há verbos relacionais como “ser” e “tornar-se”. Os verbos de ação são os que indicam um agente agindo sobre um estado de coisas. Os estativos indicam a mudança de um estado de coisas para outro estado de coisas (e.g, João tornou-se saudável). Os relacionais são os que indicam relações entre seres (e.g, Carlos é brasileiro).

2. NÍVEL SEMÂNTICO

O nível semântico é composto do conteúdo e da forma com que o conteúdo é passado. Essa forma do conteúdo ser transmitido é chamada de perspectivização conceptual; ou seja: as variadas maneiras de descrever uma situação. Uma das motivações para expressar o conteúdo de determinada maneira e não de outra está associado à argumentação. Por argumentação, entenda-se a capacidade de influenciar o pensamento de outro, sua visão de mundo ou mesmo suas ações[6].

Um verbo como “correr”, posso apresentá-lo no presente, passado ou futuro. Ou na voz ativa, passiva ou média (no caso do grego). O aspecto verbal diz respeito às variadas formas de apresentar uma situação, evento etc.

Uma observação, sem entrar em minúcias distintivas entre situação, evento e ação, toda experiência na realidade concreta envolve os seguintes elementos: as ações realizadas, os envolvidos nessas ações como os agentes e os possíveis pacientes das ações e circunstância espaço-temporal. O verbo é só um dos componentes semânticos de descrição de eventos/situações/ações. No nível semântico, temos a apresentação dessas experiências que são relacionadas às palavras e às suas combinações. Essas combinações entram no campo da sintaxe.

No nível semântico, o perfectivo indica a visão distante sobre a situação da parte do falante. O imperfeito indica proximidade distanciada da visão do falante sobre uma situação. O presente sinaliza proximidade da visão do falante sobre a situação. O mais-que-perfeito indica visão um pouco mais aproximada do falante sobre a situação e o perfeito sinaliza uma visão altamente aproximada do falante sobre a situação. Por outras palavras, o aspecto verbal serve de instrumento para o falante/escritor empacotar o conteúdo lexical de um verbo de determinada maneira em relação às demais opções de escolha no nível da oração em direção ao texto.

3. NÍVEL ORACIONAL

No nível da oração, é preciso fazer uma distinção entre formas finitas e formas não-finitas (ou infinitas). As formas não-finitas são infinitivo e particípio. As demais são formas finitas (indicativo, imperativo, subjuntivo, futuro e optativo). Formas finitas são as que um verbo é especificado pelas categorias de pessoa (1ª, 2ª e 3ª p. no singular ou no plural).

Neste nível de análise, o aspecto verbal se relaciona com as formas finitas e as infinitivas.  Por exemplo, quando temos o perfeito no modo indicativo, isso sinaliza ao leitor um maior envolvimento do agente-sujeito da oração no estado em que ele é apresentado. Mas esse nível de  envolvimento se dá em graus ao considerar que aspecto verbal se apresenta em mesclagem com os modos verbais. Uma coisa é o aspecto com o indicativo; outra coisa é aspecto com particípio ou imperativo.

4. NÍVEL TEXTUAL

No texto, o aspecto verbal tem duas funções: coerência e coesão. Coesão é a capacidade de ligar o texto na interação produtor textual e leitor[7]. O aspecto verbal é usado para coesão sequencial; ou seja: é usado para fazer as ideias do texto progredirem. Por outras palavras, o aspecto verbal ajuda a compreender a estrutura do texto. Por exemplo, textos narrativos como Apocalipse usam como estrutura o indicativo aoristo, pois este causa no leitor um efeito de sentido de objetividade, por essa razão João usa muito a expressão “eu vi” no indicativo aoristo. Por outro lado, há trechos em Apocalipse (capítulo 5) em que o tom é mais descritivo, sendo usado o particípio como recurso de referenciação.

Quanto à coerência, essa diz respeito à construção do sentido; o texto é uma continuidade de sentidos. O texto é uma totalidade de sentido pressupondo a unidade da realidade. Um dos elementos da coerência é o da focalização, aquilo que é o foco de atenção. O perfeito é o maior foco de atenção, em relação às outras formas de aspecto verbal, a que o leitor deve se atentar. Mas essa chamada de atenção está associada à construção do tópico discursivo; ou seja: o tema central do texto ou passagem. O perfeito contribui para sinalizar ao leitor o tema do texto.

5. BREVE ESTUDO DE CASO

Antes de concluir, vou mostrar os vários níveis de análise linguística do aspecto estativo em Apocalipse 5:1.

Καὶ εἶδον ἐπὶ τὴν δεξιὰν τοῦ καθημένου ἐπὶ τοῦ θρόνου βιβλίον γεγραμμένον ἔσωθεν καὶ ὄπισθεν κατεσφραγισμένον σφραγῖσιν ἑπτά.

E vi na destra do que estava assentado sobre o trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos.

Há dois verbos no aspecto estativo (γεγραμμένον [escrito] e κατεσφραγισμένον [selado]), ambos associados ao substantivo βιβλίον (livro). A análise será nestes níveis: lexical, semântico, sintático e textual-discursivo.

5.1 Lexical

Sob o ponto de vista lexical, podemos analisar a morfologia do perfeito no particípio: duplicação da primeira sílaba (γε)  terminação de particípio (μένον). Por uma análise contrastiva, é possível distinguir o  particípio perfeito (γεγραμμένον) do particípio presente (καθημένου). O particípio perfeito está na voz passiva e caso acusativo, enquanto o particípio presente está no caso genitivo e voz média.  

Do ponto de vista do conteúdo semântico, o particípio perfeito tem como referencial o estado do livro de “estar escrito e selado”. O livro encontra-se na condição de selado e escrito. O verbo “escrever” tem um conteúdo semântico universal ou pelo menos conhecido do mundo ocidental.  Já o verbo “selar” significa fechar algo com segurança. Em uma análise lexical mais específica considerando o gênero do livro (carta, profecia e apocalipse),  ambos são relativos a um conhecimento que não está acessível à criação de Deus, visto que nem anjos nem profetas (João) nem anciãos nem as criaturas terrenas, aéreas e aquáticas têm autoridade para abrir o livro selado e descobrir seu conteúdo.

5.2 Semântico

Do ponto de vista semântico, o perfeito tem a função de especificar algo sobre o livro, fornecendo um detalhe importante que o leitor precisa levar em consideração. Na relação entre as formas aspectuais, temos que aoristo empacota o conteúdo de forma mais geral, o presente especifica ao passo que o perfeito fornece ainda mais detalhes. Logo, esse não é para ser visto pelo leitor como um livro comum. Os dois perfeitos  (γεγραμμένον e κατεσφραγισμένον) dão bastante detalhe sobre o livro.

Ainda do ponto de vista semântico, o perfeito está associado ao particípio. O particípio tem duas características semânticas: a de pressuposição e a de evocação de frame[8]. Como pressuposição, o particípio sinaliza ao leitor que o conteúdo é assumido como verdade como exercício imaginativo na mente do leitor[9]. João não está fazendo alguma afirmação sobre o livro. Antes apresenta seu conteúdo chamando o leitor a tomá-lo como verdade. Como frame, o particípio evoca um conhecimento de mundo que se espera que o leitor saiba. O frame é LIVROS TÊM CONTEÚDO e LIVROS PODEM SER SELADOS.

Ao mesclar particípio com aspecto estativo (perfeito), João requer que o leitor, usando seu conhecimento de mundo, relacione o conteúdo semântico do “livro” no contexto do capítulo 5. Isso se desdobra no nível de análise textual por processos de referenciação, coerência e identificação de tópico discursivo (veja abaixo).

5. 3 Sintático

Do ponto de vista sintático, os particípios no perfeito criam um sintagma nominal tendo como núcleo o substantivo “livro” (βιβλίον γεγραμμένον ἔσωθεν καὶ ὄπισθεν κατεσφραγισμένον). Sintagma é a união semântica entre duas ou mais palavras formando uma unidade. Morfologicamente, isso é identificado pelo caso. Tanto βιβλίον como os particípios estão no caso acusativo porque estes últimos concordam com o núcleo “livro”. Por seu turno, “o livro escrito e selado por dentro e por fora” é o complemento do verbo “vi”, de sorte que forma um sintagma verbal tendo como núcleo εἶδον (“vi”). Com isso, podemos observar que uma oração é constituída de sintagmas. Note que o nível de análise vai considerando os pontos anteriores e se tornando mais complexo.

Se pensarmos do ponto de vista morfossintático, eis que temos:

Parágrafo > Orações > oração >  sintagma > palavras > morfemas > desinências

Da esquerda à direita, podemos pensar no parágrafo como constituído de um conjunto de orações em torno de um subtema; estas, por sua vez, são formadas por orações, que são formadas por sintagmas e por aí vai.

5.4 Textual

No nível textual, o sintagma nominal “livro escrito e selado por  dentro e por fora” tem quatro funções. A primeira é a de introdução referencial, processo pelo qual um novo referente é introduzido no texto. A segunda é sinalizar o tópico discursivo – quem é apto para abrir o livro selado. A terceira é a recategorização do objeto de discurso “livro”. Por outras palavras, o particípio como sintagma nominal serve para criação de referenciação. A quarta é ajudar o leitor a construir a coerência ao identificar aquilo que é mais IMPORTANTE no texto: mais adiante em 5:6 é [re]introduzido outro referente, o Cordeiro (ἀρνίον ἑστηκὸς ὡς ἐσφαγμένον [um Cordeiro de pé como no estado de imolado]), que é recategorizado como de pé e imolado por dois particípios no perfeito. Todos esses particípios no perfeito são usados para que o leitor construa o sentido ao inferir a relação entre o objeto de discurso LIVRO ESCRITO E SELADO com CORDEIRO DE PÉ IMOLADO. Em suma, o Cordeiro, por causa de sua morte (e ressurreição), é o único  que tem autoridade para abrir o livro. A referenciação também se dá não somente pelos elementos explícitos mas também pelos implícitos. Fica implícito que só quem pode abrir o livro é alguém divino, pois nenhuma criatura de Deus pode  fazê-lo. Logo, temos o referente – QUEM ABRE O LIVRO É ALGUÉM DIVINO. Sendo assim, Jesus é Deus.

CONCLUSÃO

O aspecto estativo (perfeito) sinaliza ao leitor que o escritor está apresentando o conteúdo com maior focalização, especificidade e perspectiva altamente aproximada, cuja função é orientar o leitor argumentativamente a construir o sentido do texto ao relacionar o aspecto perfectivo com o tema central da passagem.

Além disso, pode-se dizer que a proeminência é tanto no nível lexical quanto oracional e textual assumindo uma visão de continuum do sentido do texto. Tem-se, pois, que focalizar no nível lexical (morfológica), semântico, oracional é uma metonímia quando da sua relação com o todo do texto.


[1] OLSEN, M. A semantic and pragmatic model of lexical and grammatical aspect. New York: Routledge, 1997.

[2] KOCH, Ingedore. A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1990.

[3] PORTER, Stanley. Prominence: An Overview. In: PORTER, Stanley; O’DONNELL, Matthew (orgs). The Linguist as Pedagogue: Trends in the Teaching and Linguistic Analysis of the Greek New Testament. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009.

[4] LANGACKER, R. Cognitive Grammar: A basic introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008.

[5] LANGACKER, R. Essentials of Cognitive Grammar. Oxford: Oxford University Press, 2013.

[6] KOCH, I; ELIAS, V. Escrever e Argumentar. São Paulo: Contexto, 2016.

[7] KOCH, I. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2010. 22. Ed.

[8] PARK, Y. Mark’s Memory Resources and the Controversy Stories (Mark 2:1–3:6): An Application of the Frame Theory of Cognitive Science to the Markan Oral-Aural Narrative. Linguistic Biblical Series 2. Leiden: BRILL, 2010.

[9] ALBUQUERQUE, R. Presupposition and [E]motion: The Upgraded Function and the Semantics of the Participle in the New Testament. New York: Peter Lang, 2020.

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