Introdução
Ao observarmos o versículo de Efésios 2.8, notamos que há referentes com artigo e referentes sem artigo no grego. A presença ou ausência do artigo à primeira vista parece ser mera questão estilística de escolha sem qualquer intenção do escritor, mas não é este o caso que pretendo mostrar abaixo.
Geralmente, o artigo no grego koiné é interpretado como forma de marcar definição de um referente. Por exemplo, no português, podemos dizer:
“Você viu o Pedro?”
Neste caso, o artigo define o referente Pedro. Não estou falando de qualquer Pedro, mas de um Pedro específico. Acontece que no português é possível usar um referente sem artigo e mesmo assim ele ser definido. Vejamos.
“Você viu Pedro?”
No primeiro caso, em algumas regiões do Brasil, como na cidade de Fortaleza, no Ceará, é comum o uso do artigo. No segundo caso, na região do Cariri, no estado do Ceará, no Brasil, é comum a ausência do artigo. Com isso, pode-se observar que a presença ou ausência do artigo não marca necessariamente um referente indefinido.
No caso do grego, o entendimento do uso do artigo como definição de um referente é influência da gramática inglesa, que possui artigo definido (the) e indefinido (a ou an). Tanto no inglês quanto no português brasileiro a introdução de um novo referente no texto se faz por artigo indefinido. No grego, a estratégia é o uso do pronome indefinido τις (um, algum): Ανὴρ δέ τις Ἁνανίας ὀνόματι (Acts 5:1, “Havia um homem chamado Ananias”). Além disso, o grego não possui artigo indefinido, por essa razão é inconsistente falar em artigo definido para se referir a ὁ, ἡ, τό.
A Função do Artigo
Indo direto ao ponto, o uso do artigo não é definir um referente, mas identificá-lo. Eis:
“Identificação tem a ver com a avaliação que o falante faze se a representação discursiva de um referente específico já está estocado na mente do seu ouvinte ou não” (Lambrecht, 1996, p.76).
Uso do artigo apela para o conhecimento do leitor: o leitor consegue identificar o referente intencionado pelo escritor (Runge, 2019; Peters, 2019). Considerando os leitores primários, é preciso interpretar o referente não a partir de nossa visão de mundo, mas da visão de mundo dos seus leitores.
Outra característica do uso do artigo associado a um referente é o de apresentá-lo como concreto em oposição ao algo abstrato (Peters, 2019). A oposição concreto e abstrato está associada a proeminência e plano de fundo, respectivamente, em um texto. Todo texto é marcado por aquilo que é proeminente (importante) e o que é menos importante. A proeminência ou saliência diz respeito à tentativa do escritor/falante de chamar a atenção do leitor/ouvinte para algo bastante importante. Uma das estratégias para marcar proeminência é usar referentes concretos dando vivacidade ao texto. Por outro lado, referentes abstratos tendem a ser menos enfáticos em comparação com concretos. Em um texto, referentes concretos são mais enfáticos do que referentes abstratos.
Análise de Efésios 2.8
Este é um texto que causa dificuldade de interpretação porque o uso de τοῦτο pode ser usado para se referir a πίστεως (fé) ou a χάριτί (graça). O que não vem dos leitores? A fé em Jesus ou a salvação graça?
Τῇ γὰρ χάριτί ἐστε σεσῳσμένοι διὰ [Ø]πίστεως[1]· καὶ τοῦτο οὐκ ἐξ ὑμῶν, θεοῦ τὸ δῶρον·
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; (Ef 2:8)
O sintagma preposicional διὰ πίστεως é metonímia fazendo referência a confiar em Jesus, de sorte que não é o ser humano que se salva. É Jesus quem o salva. O uso de πίστεως sem artigo mostra que é termo abstrato e não concreto. Se πίστεως tivesse artigo, seria um termo concreto (i.e, uma experiência imediata do leitor), de sorte que poder-se-ia concluir que a fé do indivíduo o salva, mas NÃO É ESTE O CASO. Porque está sem artigo, πίστεως é termo abstrato, que funciona metonimicamente para fazer referência à confiança em Jesus e não referência à ação do indivíduo em se salvar. Paulo faz contraste entre χάριτί e πίστεως, concreto e abstrato, respectivamente.
Os referentes “graça” (τῇ χάριτί) e “dom” (τὸ δῶρον) são marcados por artigo, ao passo que o referente “fé (πίστεως) não tem artigo. As três palavras são abstratas, mas, ao usar o artigo, as palavras se tornam concretas. Ou seja: é algo da experiência direta e imediata dos leitores. Além disso, o uso de artigo aponta qual é a ênfase de Paulo: a salvação pela graça de Deus. O ponto central do versículo não é a fé; é a salvação pela graça de Deus. Visto que τῇ χάριτί e τὸ δῶρον estão com artigo, são referentes especificados e caracterizados como concretos, podendo-se inferir que o referente é a morte concreta de Jesus na cruz que salva o indivíduo. Sendo usados artigos para χάριτί e δῶρον, a graça e o dom de Deus, isto é, a salvação, não pode ser vista como algo abstrato, mas concreto: a morte de Cristo na cruz.
Como o referente χάριτί vem com artigo (τῇ), estando na memória de trabalho do leitor, o que se espera é que ele conclua que o pronome τοῦτο faça referência a τῇ χάριτί, mantendo assim o referente principal em destaque. O uso do artigo em τὸ δῶρον também funciona anaforicamente[2]; ou seja: aponta para o referente anterior, que o escritor espera que esteja ativo na mente do leitor. Visto que o termo destacado é χάριτί por causa do artigo τῇ e não πίστεως, espera-se que τοῦτο (“isto”) aponte para “a graça”.
Outra pista para interpretar τοῦτο como referência anafórica a τῇ χάριτί é o uso da conjunção καὶ. Esta conjunção sinaliza ao leitor uma continuidade entre o que foi escrito e o que será escrito. Sendo o foco da primeira oração o referente τῇ χάριτί tendo como plano de fundo διὰ πίστεως, o uso da conjunção permite inferir que, com base na continuidade entre as duas sentenças, o pronome τοῦτο (“isto”) refere-se aτῇ χάριτί. Além disso, o uso da voz passiva tem duas funções. A função textual é marcar o tema central da sentença – a graça salvadora – e apagar a responsabilidade do indivíduo. Desta forma, Paulo marca gramaticalmente que não é do poder do indivíduo ser salvo. O que nos leva a concluir que a fé é um ato de graça de Deus concedido ao indivíduo.
Conclusão
A visão tradicional sobre artigo grego tende a interpretá-lo como definição de um referente. Meu alvo aqui não foi refutar esta visão, mas apresentar outra proposta aplicando-a no texto de Efésios 2.8. A visão artigo como identificação e especificação de um referente tornando-o abstrato contribuiu para o entendimento do texto ao ajudar na percepção do contraste entre χάριτί (“a graça”) e πίστεως (“fé”), com artigo e sem artigo, respectivamente, referente concreto e abstrato.
O uso do artigo em τῇ χάριτί, considerando o uso da conjunção καὶ, o uso da voz passiva e o uso articular do referente τὸ δῶρον, contribuíram para inferir que τοῦτο é usado anaforicamente para retomar o referente mais proeminente na memória de trabalho do leitor referindo-se a τῇ χάριτί.
Referências
LAMBRECHT, K. Information structure and sentence form: Topic, focus, and the mental representations of discourse referents. Cambridge: Cambridge University Press, 1994
PETERS, R. A Discourse-Functional Approach to the Greek Article. In: The Greek Article in Post-Classical Greek. Edited by Daniel King. Dallas: SIL, 2019.
RUNGE, S. Toward a Unified Understanding of the Greek Article from a Diachronic, Cognitive Perspective. In: The Greek Article in Post-Classical Greek. Edited by Daniel King. Dallas: SIL, 2019.
[1] O símbolo [Ø] serve para identificar a ausência de um elemento, no caso, a falta do artigo.
[2] Anáfora quer dizer um elemento gramatical que faz retoma um referente já mencionado no texto. Como há dois referentes mencionados no texto, “graça” e “fé”, ocorre a dúvida se “isto” (τοῦτο) refere-se ao primeiro referente ou ao segundo. Por causa do artigo em Τῇ γὰρ χάριτί e não em πίστεως, Paulo deixa claro pelo uso do artigo que o primeiro é o referente principal.