CONSTRUINDO CENÁRIOS
O ser humano tem essa capacidade de projetar situações virtuais para se orientar na sua vida presente. Nós agimos no presente com base no passado em termos de memória (boas ou ruins) e expectativas futuras. A memória diz respeito ao passado que não está fisicamente presente, mas afeta nossas ações. Por exemplo, a morte de Cristo, no passado, afeta o cristão atualmente: ele deve viver em obediência a Deus. A expectativa do céu tem efeito de criar no cristão em sua situação imediata o desejo pela volta de Cristo e de obedecê-lo. Passado e futuro são virtualidades.
Partindo da realidade como virtualidade, João cria cenários possíveis com o objetivo de orientar seus leitores a saberem lidar com seus pecados. João tenta leva-los a considerarem situações possíveis diante das quais são feitas afirmações da parte do apóstolo. No grego, assim como no português, uma forma de criar cenários virtuais e alternativos à nossa situação física e imediata é pelo uso de subjuntivo. Ao projetar situações possíveis, podemos nos envolver com elas para os objetivos na comunicação. É isso que João faz em I de João 1.5-10.
Por exemplo no versículo 6, virtualmente, a contradição entre dizer que se tem comunhão com Deus e andar no pecado fazem parte da estrutura da realidade em termos de potencialidade. É potencial porque não necessariamente seus leitores estavam vivendo daquela forma. Ao usar as condicionais, João cria vários cenários alternativos para instruir seus leitores quanto à doutrina correta na vida prática. Tem-se com isso que os usos das condicionais criam cenários virtuais para instruir e corrigir os crentes quanto à doutrina correta e sua aplicação na vida cristã. João não está indicando que o salvo não possa andar em pecado. Sua preocupação é instrução doutrinária – Deus é luz não se associando com o pecado – na vida cristã, a busca por santidade; ou seja: andar afastado do pecado.
DE OLHO NO TEXTO
5 Καὶ ἔστιν αὕτη ἡ ἀγγελία ἣν ἀκηκόαμεν ἀπ᾽ αὐτοῦ καὶ ἀναγγέλλομεν ὑμῖν, ὅτι ὁ θεὸς φῶς ἐστιν καὶ σκοτία ἐν αὐτῷ οὐκ ἔστιν οὐδεμία. 6ἐὰν εἴπωμεν ὅτι κοινωνίαν ἔχομεν μετ᾽ αὐτοῦ καὶ ἐν τῷ σκότει περιπατῶμεν, ψευδόμεθα καὶ οὐ ποιοῦμεν τὴν ἀλήθειαν· 7ἐὰν ἐν τῷ φωτὶ περιπατῶμεν, ὡς αὐτός ἐστιν ἐν τῷ φωτί, κοινωνίαν ἔχομεν μετ᾽ ἀλλήλων, καὶ τὸ αἷμα Ἰησοῦ τοῦ υἱοῦ αὐτοῦ καθαρίζει ἡμᾶς ἀπὸ πάσης ἁμαρτίας. 8ἐὰν εἴπωμεν ὅτι ἁμαρτίαν οὐκ ἔχομεν, ἑαυτοὺς πλανῶμεν καὶ ἡ ἀλήθεια οὐκ ἔστιν ἐν ἡμῖν. 9ἐὰν ὁμολογῶμεν τὰς ἁμαρτίας ἡμῶν, πιστός ἐστιν καὶ δίκαιος, ἵνα ἀφῇ ἡμῖν τὰς ἁμαρτίας καὶ καθαρίσῃ ἡμᾶς ἀπὸ πάσης ἀδικίας. 10ἐὰν εἴπωμεν ὅτι οὐχ ἡμαρτήκαμεν, ψεύστην ποιοῦμεν αὐτόν, καὶ ὁ λόγος αὐτοῦ οὐκ ἔστιν ἐν ἡμῖν.
5Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. 6Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. 7Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado. 8Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós. 9Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. 10Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós.(ARA)
No versículo 6, o pronome αὕτη tem a função catafórica de desenvolver a ideia de João a respeito da mensagem do evangelho. A partícula ὅτι serve para introduzir o conteúdo da mensagem (ἡ ἀγγελία). A oração relativa (ἣν ἀκηκόαμεν ἀπ᾽ αὐτοῦ) tem a finalidade de especificar aos leitores uma característica da mensagem: ela foi uma mensagem testemunhada por João. A oração introduzida pela conjunção καὶ (ἀναγγέλλομεν ὑμῖν) acrescenta uma segunda característica da mensagem: ela foi transmitida anteriormente àqueles leitores. O indicativo perfeito (ἀκηκόαμεν) marca asserção altamente aproximada sinalizando presença bastante acentuada do sujeito de maneira a criar efeito de sentido de alta proeminência. O indicativo presente (ἀναγγέλλομεν) marca asserção aproximada indicando acentuada presença do sujeito. É algo que João considera muito importante.
O presente, no grego, indica grau de subjetividade maior em relação ao aoristo no sentido de marcar de forma mais aproximada a marca da subjetividade; por seu turno, o perfeito sinaliza grau ainda maior de subjetividade, por essa razão perfeito marca maior presença do sujeito em termos de alta proeminência. O conceito de asserção significa duas coisa: primeiro, é entendido como a expectativa do falante de que o leitor venha a conhecer algo. Segundo, é entendido como informação, sendo já conhecida, tomada como verdade (take for granted). Certamente, o que João está escrevendo não é algo novo de seus leitores. Ao usar presente e perfeito, João está chamando a atenção de seus leitores para a mensagem que tem relevância para suas vidas na situação imediata deles. A partícula ὅτι serve para introduzir o conteúdo da mensagem; ou seja: “Deus é luz não havendo nele treva alguma” (ὁ θεὸς φῶς ἐστιν καὶ σκοτία ἐν αὐτῷ οὐκ ἔστιν οὐδεμία.) A metáfora é usada para indicar que Deus está dissociado e afastado do pecado.
No versículo 6, a partir da metáfora DEUS É LUZ E NÃO TREVAS, João cria cenários virtuais alternativos com base nos quais ele faz determinadas afirmações. As orações condicionais com subjuntivo servem para criar cenários alternativos virtuais para que os seus leitores vejam as implicações destes cenários. O uso de ἐὰν seguido de subjuntivo marca um cenário ainda mais virtual se comparado com o uso de indicativo. Estou usando virtual no sentido de oposto ao fisicamente presente. Por outras palavras, o que está posto de modo distante da situação imediata. É virtual também por que se considera uma situação potencial cujo efeito é agir sobre a situação imediata dos participantes da interação. O uso de ὅτι evoca o conteúdo do que vai ser dito. Partículas condicionais como ἐὰν têm a função de indicar a perspectiva de outra pessoa que não a quem está enunciado o conteúdo. O que significa dizer que João está evocando um pensamento que não é propriamente o seu. Há duas situações virtuais apresentadas: “temos comunhão com ele e andamos nas trevas” (κοινωνίαν ἔχομεν μετ᾽ αὐτοῦ καὶ ἐν τῷ σκότει περιπατῶμεν). Ambas são conectadas pela conjunção καὶ. No primeiro cenário potencial (virtual),tem-se comunhão com Deus. Ou seja: o cristão vive em comunhão com Deus. No segundo cenário virtual, o cristão anda nas trevas; ou seja: no pecado. O sintagma preposicional “nas trevas (ἐν τῷ σκότει) ecoa a afirmação no versículo 5 (Deus está na luz e não nas trevas).
João apresenta dois cenários virtuais opostos que são conectados por καὶ. João não está interessado em nos dizer se ambos os cenários estavam ocorrendo com seus leitores. Ele está fazendo-os ver o que se espera em ambas as situações. Na primeira situação virtual, projeta-se a fala de alguém (εἴπωμεν, dizemos). Na segunda situação virtual, ele projeta a vida da pessoa (περιπατῶμεν, andamos). A conclusão de João é que, subentendida uma incompatibilidade entre as duas situações virtuais, viver em ambas simultaneamente é mentira (ψευδόμεθα). João usa uma oração introduzida por καὶ parafraseando o que é o mentir (οὐ ποιοῦμεν τὴν ἀλήθειαν, não praticamos a verdade). Por outras palavras, andar na verdade é não andar nas trevas. Os usos do indicativo (ψευδόμεθα e ποιοῦμεν, mentirmos e praticamos) presente marcam envolvimento de João em relação à sua asserção. Ao usar presente nos subjuntivos, João expressa envolvimento de sua parte, por sinalizar explicitação da subjetividade. Dito de outra forma, João está tratando de algo que ele considera bastante relevante.
No versículo 7, ele cria outro cenário que deve ser interpretado com base no sintagma preposicional ἐν τῷ φωτὶ (na luz). Este sintagma evoca a afirmação doutrinária joanina de que Deus é luz; ou seja: não se associa com o pecado. João é ainda mais repetitivo ao usar a construção (ὡς αὐτός ἐστιν ἐν τῷ φωτί, como ele está na luz) deixando claro ao leitor a afirmação doutrinária no versículo 5. No versículo 7, o cenário criado é – virtualmente o indivíduo vive dissociado do pecado: afastado de sua presença. Neste cenário, João faz duas afirmações. Primeira, ao viver dissociado do pecado, o sujeito tem comunhão com Deus. Segunda, ao viver afastado do pecado, o indivíduo evidencia ter sido purificado pelo sangue de Cristo. Ou seja: a expectativa que se tem de uma pessoa salva é vê-la andar longe do pecado.
João cria vários cenários virtuais com base na metáfora LUZ E TREVAS. As condicionais criam o efeito de sentido relacionado a orientar seus leitores a viverem em santidade no sentido de ficarem longe do pecado. Qualquer coisa que passe disso, como perda de salvação, é pura especulação. O ponto de João é: Sendo Deus santos, os salvos devem viver afastados do pecado. Virtualmente, um crente pode professar ser salvo, mas viver em desobediência a Deus.
No versículo 8, é criado um cenário em que alguém afirma que não tem pecado, ficando subentendido ser um cristão. É dentro deste cenário virtual que a afirmação de João devem ser interpretadas – ἑαυτοὺς πλανῶμεν καὶ ἡ ἀλήθεια οὐκ ἔστιν ἐν ἡμῖν. Por outras palavras, a pessoa que se diz cristã, mas nega que seja pecadora, está enganada quanto à mensagem testemunhada e proclamada. Faz parte da mensagem do evangelho a assunção de que o indivíduo é pecador. Enganar a si mesmo significa não ter a verdade em si. O verdadeiro cristão entende ser ainda pecador.
No versículo 9, João continua instruindo seus leitores a terem uma forma correta de lidar com o pecado. Ele cria um cenário virtual em que a pessoa reconhece ser pecadora na presença de Deus. Neste cenário, João salienta a fidelidade de Deus em perdoar-nos dos pecados purificando-nos da injustiça. O uso de subjuntivo aoristo (ἀφῇ e καθαρίσῃ, perdoe e purifique) no versículo 9 cria efeito de distanciamento social. Perdoar o pecado é parafraseado em termos de ser purificado de injustiça. Ação de perdoar pecados é conferida somente a Deus. Ao usar o aoristo, João cria efeito de atenuação de sua presença para criar efeito de deferência por Deus.
No versículo 10, João usa condicional no subjuntivo com partícula ὅτι para evocar o pensamento de o cristão não ter pecado. O uso do indicativo perfeito (ἡμαρτήκαμεν, pecamos) expressa forte presença do sujeito marcando alta subjetividade e assim maior envolvimento de João, permitindo-nos inferir que a questão central gira em torno de como o cristão lida com o pecado sendo que ele é chamado para viver com Deus, que é luz (i.e, santo). No cenário em que alguém nega ser pecador, João faz afirmação de que isso se constitui em mentira; ou seja: a mensagem do evangelho não está na pessoa. Ela não é salva. O cristão salvo reconhece a realidade do pecado em sua vida. Como lidar com o pecado envolver entender quem é Deus e nosso chamado a ter comunhão com Ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma observação importante é que os subjuntivos presentes estão na primeira pessoa do plural (“nós”). Com isso, João se coloca virtualmente na mesma posição que a de seus leitores, nas situações potenciais imaginadas. Dizendo de outra maneira, os usos condicionais com as conclusões nos indicativos no presente têm função de instrução quanto à doutrina e suas implicações para a vida cristã.
Em suma, a forma correta de lidar com pecado envolve:
1. Saiba que Deus está dissociado do pecado;
2. Viva afastado do pecado por nos associarmos com Deus (i.e, termos comunhão com Deus)
3. Reconheça seus pecados em sua vida.
4. Busque a fidelidade de Deus em nos perdoar.
Excelente!
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