INTRODUÇÃO
A expressão “revelação de Jesus” (Ἀποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ) é daquelas que estudiosos e leitores desejam saber precisamente o que o autor intencionou com isso.
Este zelo por precisão tem algumas fontes, imagino. Uma delas é o zelo da parte de cristãos em conhecer o que diz a palavra de Deus.
Uma segunda é algo que está no imaginário das pessoas de que a verdade está associada ao que é claro, fixo e preciso. Por outro lado, o que é ambíguo, nublado e nebuloso não é verdadeiro.
Esse imaginário tem suas origens no cientificismo, movimento intelectual que considerava objeto de pesquisa tudo que fosse matematizado e, de certa forma, a verdade é a que está no campo da precisão.
Além disso, por consequência, o que não pode ser matematizado não entra como objeto de pesquisa.
Como a introdução está entrando no desenvolvimento deste texto, passemos para o primeiro ponto: a natureza da linguagem.
PARA QUE SERVE A LINGUAGEM
Digo logo: a linguagem não tem a função de ser precisa nem exata. A comunicação leva em conta não só as palavras, mas todo um mundo de conhecimento que as pessoas têm. Na hora de nos comunicarmos com alguém, temos também conhecimento entre nós como falantes que nos permite entender uns aos outros.
A linguagem não tem o alvo de ser precisa porque temos o mundo real e concreto. O mundo ao nosso redor é o alicerce da comunicação. A gente se comunica com palavras e gestos (mãos, face) com base no mundo. Sem o mundo não haveria comunicação.
Antes de você conhecer a palavra “carro”, você viu o objeto real que se movimenta.
Sem o mundo, as palavras se tornam vazias.
As palavras possuem vários significados. Vejamos o verbo “machucar”.
Se digo: “John machucou o braço de Ana com um canivete”
é diferente de:
“Eu machuquei o coração de Clarice”
O verbo é o mesmo, mas o significado não. No primeiro, a causa da dor é física. No segundo, temos uma dor de ordem psicológica.
Podemos até concluir que o significado do segundo tem como base o primeiro. Isso porque criamos novos significados a partir dos que já existem e das palavras existentes.
Por essa razão, posso dizer “o pé da cadeira”.
Em suma: a linguagem nos dá a capacidade de falarmos das coisas do mundos, das experiências, da realidade. E tudo isso sempre está para além da própria linguagem, por isso falamos em metáforas: para expressarmos muita coisa com poucas palavras.
O TEXTO DE APOCALIPSE
Quando entramos em textos como o de Apocalipse com o imaginário da precisão, corremos o risco de não entendermos os efeitos de sentido que o texto nos sugere.
Por efeitos de sentido, quero dizer o modo com que o autor escreveu o texto para causar determinados efeitos no leitor tais como medo, alerta, zelo, riso, ambiguidade etc.
A EXPRESSÃO “REVELAÇÃO DE JESUS CRISTO”
A expressão “de Jesus Cristo” (Ἰησοῦ Χριστοῦ) é ambígua sim; ou seja: ela cabe várias interpretações a partir da gramática grega.
“De Jesus Cristo” (Ἰησοῦ Χριστοῦ) está no caso genitivo. A terminação -οῦ (ou) sinaliza que uma palavra no grego está no caso genitivo.
O caso é uma categoria da gramática que tem a função de nos dar informações sobre uma situação no que diz respeito às pessoas envolvidas, às relações entre elas, às suas características e a onde estão localizadas no tempo-espaço.
Dizer que uma palavra está no genitivo significa que ela está nos fornecendo detalhes sobre outra palavras. Eis nosso tema de estudo:
Ἀποκάλυψις Ἰησοῦ Χριστοῦ (apokálypsis iēsou christou).
A palavra “Revelação” (Ἀποκάλυψις) no informa que “um conhecimento de coisas futuras será mostrado a um grupo de pessoas”.
Mas ainda assim, escrever “relevação” não nos diz muita coisa. Ainda precisamos de mais detalhes para saber do que se trata o livro ou a situação.
Quando é acrescentado “de Jesus Cristo” (iēsou christou), temos que esta palavra, por estar no genitivo, nos fornece um detalhe para entender o que é essa revelação.
Simplificando: a palavra “revelação” deve ser entendida à luz da palavra “Jesus Cristo”.
Complicando: a expressão “de Jesus Cristo” deságua muitas possibilidades de interpretação.
Eis Revelação de Jesus Cristo como:
1. A revelação que fala sobre a pessoa de Jesus;
2. A revelação que tem sua origem em Jesus;
3. A revelação cujo dono é Jesus;
“De Jesus Cristo” poderia significar qualquer um dos significados acima. Certamente que um não exclui o outro. São perspectivas distintas que não se contradizem.
A primeira é perspectiva de Jesus como o tema do livro.
A segunda é Jesus como o originador da relevação.
A terceira é Jesus como autoridade da revelação.
João poderia ser ainda mais específico usando uma preposição grega para deixar as coisas mais claras. Mas não o fez.
Considero que o uso desse genitivo tem o efeito de criar o sentido de ambiguidade. Uma razão para isso é a própria escolha do genitivo e a ausência de preposição.
Não estou dizendo que João está errado. Estou dizendo que, dentre as várias opções de escolhas e combinações posssíveis, João escolheu o genitivo.
Outra razão é o gênero do livro, gênero apocalíptico que usa linguagem figurativa para causar vários efeitos no leitor.
CHEGANDO À CONSUMAÇÃO
Em suma:
A ambiguidade faz parte da gramática. Qualquer pessoa que apela para a gramática como forma de dizer que o texto é preciso, claro e sem ambiguidade, não entende a natureza da gramática.
A gramática é ambígua (sendo essa sua natureza) para que o leitor, usando seu conhecimento de mundo, faça a conclusão do significado.
A gramática expressa significado, mas o significado não está só nela. O significado é uma espécie de campo onde entram gramática, memória do leitor e mundo real e concreto.
Textos como o de Apocalipse requerem não um imaginário em termos de ideias fixas, claras e precisas.
Mas um imaginário que visualize figuras, desenho e imagens sendo narradas.