O segredo de Saussure
Uma das diferenças fundamentais entre a mentalidade da Antiguidade e a da Modernidade é que a segunda tinha como finalidade revelar os segredos do conhecimento que até então aquela não havia descoberto. Essa ideia pode ser observada na linguística de Saussure, que dizia haver uma estrutura a priori, havendo categorias anteriores à experiência individual fazendo os indivíduos reconhecerem e categorizarem o mundo a partir dessas categorias e estruturas[1]. Essa estrutura a priori à experiência é a langue (“língua”), sob a qual segundo Saussure, os indivíduos estão subordinados. Saussure não usa langue no sentido concreto como língua portuguesa, francesa, alemã etc. Antes como sentido abstrato.
Revelar coisas ocultas, criando novas metáforas
Com essa proposta de estrutura a priori, que vai marcar toda a Modernidade, tem-se a ideia de revelar o que está oculto, embora isso não seja algo exclusivo daquela. No livro de Daniel, observamos o papel dos sonhos de mostrar o que é desconhecido. Por sua vez, Paulo costuma usar a palavra “mistério” no sentido de um conhecimento oculto que foi revelado. Todavia, a diferença entre os antigos e os modernos é que aqueles entendiam ser isso o papel de Deus, sendo profetas e apóstolos instrumentos nas mãos divinas. Por outro lado, os filósofos e cientistas da modernidade entendiam serem eles mesmos os agentes primários do conhecimento desconhecido. A relação metonímica mudou, deixando os homens de serem instrumentos para se tornarem os agentes primários.
Cria-se com isso uma metáfora: OS MODERNOS SÃO OS AGENTES REVELADORES DO CONHECIMENTO, passando a mudar os agentes e instrumentos de ação. Em outros termos, a forma de poder passa a ser recategorizada. Agora o indivíduo é o agente transformador da realidade por meio do aparato filosófico-científico. Todo o edifício da Modernidade está alicerçado na ideia do indivíduo como agente transformador da realidade.
Palavras mágicas
É preciso tomar cuidado até com palavras como “hermenêutica” e “exegese”, pois podem ser usadas retoricamente para causar a impressão no leitor/ouvinte de que ele agora tem o conhecimento profundo das coisas (oculto), o que não tinha anteriormente. No Brasil, somos mais levados pelos efeitos emotivos das palavras do que pelos seus significados referenciais e interacionais.
Um uso indevido de palavras nas línguas originais se dá quando da “descoberta de um conhecimento que os leigos, por não terem o acesso às línguas antigas, não poderiam perscrutá-lo”. Eis um exemplo: a palavra σπλάγχνα em Filipenses 2.1. Ela quer dizer literalmente “intestinos”, “entranhas”. Poder-se-ia dizer então que a palavra σπλάγχνα significa “os desejos internos que há em nós”. Isso soa intelectual e espiritual, muito mais quando misturado a uma forma emotiva de explicá-la.
Na verdade, o que há é um processo bastante comum de criação de significado – a metáfora. Usamos a parte interna do nosso corpo para expressar significados abstratos como os sentimentos[2]. Não por acaso, a palavra acima aparece ao lado de οἰκτιρμοι (“misericórdia”), em que esta é usada para explicar a primeira[3].
Do ponto de vista da tradução, pode-se tomar uma abordagem mais literal, visto que σπλάγχνα é explicada por οἰκτιρμοι. Por essa razão, tendo uma boa tradução, não se faz necessário ir ao grego para explicar “entranhas” como metáfora para “emoções” (a não ser neste caso aqui para tentar acabar com o encanto). O leitor, intuitivamente, conseguiria inferir o significado pretendido. Cabe ressaltar que Paulo parece usar palavras de significado parecidos para reforçar uma ideia. É o caso de Filipenses 2.1.
Acabando o encanto
O que se conclui de tudo isso é que a hermenêutica pode ser manchada quando dos usos errados do grego para explicar palavras que são autoexplicativas, considerando haver uma boa tradução. Nesse caso, é quase que chamar o leitor de imbecil por não conseguir depreender o significado de uma palavra com base nas que estão ao redor dela, como acontece com Filipenses 2.1.
Por outro lado, esse uso do grego revela uma hermenêutica que soa intelectual e espiritual, mas que nada tem de intelectual, nem sequer de piedosa, uma vez que está levando outros ao erro.
[1] Thibault, Paul. Re-reading Saussure: the dynamics of signs in social life. London: Routledge, 1997, p.5.
[2] Veja: Sharifian, Farzad; Dirven, René; Yu, Ning; Niemeier, Susanne (ed.) Culture, Body, and Language: Conceptualizations of Internal Body Organs across Cultures and Languages. Berlin: Mouton de Gruyter, 2008.
[3] Não cheguei a investigar se este seria um caso de colocação. Colocação diz respeito à tendência de certas palavras aparecem juntas a outras ou em estruturas fixas em contextos específicos.
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