O FILHO DE DEUS, NICODEMOS E O PERFEITO EM JOÃO 3:12-13

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo analisar os usos de aspecto verbal e MODOS no trecho de João 3.12-13 com base na linguística cognitiva. Segue o texto com uma tradução minha. Na primeira parte, apresento o fundamento linguístico. Em seguida é feita a análise. Depois as considerações finais.

εἰ τὰ ἐπίγεια εἶπον ὑμῖν καὶ οὐ πιστεύετε, πῶς ἐὰν εἴπω ὑμῖν τὰ ἐπουράνια πιστεύσετε; καὶ οὐδεὶς ἀναβέβηκεν εἰς τὸν οὐρανὸν εἰ μὴ ὁ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καταβάς, ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου.

“Se falei das coisas terrenas e você não acredita, de que forma você creria se eu falasse das celestiais? E ninguém está na situação de ascensão ao céu, exceto aquele que do céu desceu: o Filho do Homem”.

1. ASPECTO VERBAL E MODO

Por um lado, aspecto verbal são as formas alternativas de conceber uma situação em termos esquematicidade/especificidade, proximidade/distanciamento e proeminência/plano de fundo (SILVA, 2022). Há relação entre esquematicidade, distanciamento e plano de fundo; por sua vez, há relação entre especificidade, aproximação e foco. Aoristo, imperfeito e mais-que-perfeito são formas distanciadas em gradiência, ao passo que presente e perfeito são formas aproximadas.

Por outro lado, MODO[1] é categoria semântica que diz respeito à atitude do falante na interação com interlocutor (figura) tendo como plano de fundo as formas alternativas de conceber a realidade virtual (fundo). Estou partindo do pressuposto de que o mundo (realidade) vem antes dos sujeitos, sendo o mundo o plano de fundo no qual acontecem as interações humanas. Antes de qualquer pessoa nascer, já havia mundo, a despeito de como se deu seu surgimento. Paralelamente, antes de qualquer um nascer, já havia o que chamamos de sociedade com suas regras, valores, formas de comportamento etc.

2. RELEVÂNCIA LINGUÍSTICO-EXEGÉTICA DO ASPECTO-MODO EM JOÃO 3.12-13

2.1 Sintagmas

No nível sintagmático, temos a primeira oração καὶ οὐδεὶς ἀναβέβηκεν εἰς τὸν οὐρανὸν composta pelos seguintes sintagmas. Sintagma nominal em caso nominativo (οὐδεὶς) funcionado como sujeito gramatical de ἀναβέβηκεν. O sintagma verbal (ἀναβέβηκεν εἰς τὸν οὐρανὸν) composto de um sintagma verbal (ἀναβέβηκεν) e um sintagma preposicional (εἰς τὸν οὐρανὸν) no caso acusativo como delimitador do verbo (ἀναβέβηκεν). Este grupo de sintagmas é introduzido de conjunção aditiva καὶ dando continuidade à oração anterior (versículo 12).

O segundo grupo de sintagmas é ὁ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καταβάς (aquele que desce do céu), composto de um sintagma verbal no particípio presente articular (ὁ καταβάς, aquele que desce) e um sintagma preposicional (ἐκ τοῦ οὐρανοῦ, do céu). Os usos dos artigos trazem sentido de concretude expressando experiência imediata. Não há como este particípio aoristo ser interpretado como adverbial.

2.2 Marcador discursivo

Marcador discursivo são recursos da linguagem para expressar a avaliação que um indivíduo faz sobre algo ou alguém em certa situação de interação.  Faço observação de duas expressões que têm mais valor discursivo (avaliativo) do que referencial: o advérbio πῶς e a conjunção com partícula negativa distanciada εἰ μὴ.

O uso do advérbio πῶς (de que forma, como) tem um sentido de dúvida e incerteza causando certa dissociação do conteúdo da sentença. No evangelho de João, o advérbio πῶς flutua entre hesitação, dúvida e incredulidade, principalmente. Nicodemos, neste contexto do capítulo 3, usa πῶς para fazer pergunta que tem mais tom de incredulidade do que de dúvida (versículos 3 e 9). Em combinação com futuro (πιστεύσετε) e subjuntivo aoristo (εἴπω), πῶς traz nuance de dissociação causando efeito de crítica da parte de Jesus. O futuro é usado para impor mais autoridade. Neste caso, Jesus se coloca em posição de poder criticando a incredulidade de Nicodemos. Por ele mesmo, o futuro sinaliza certa antecipação da situação virtual. Ironicamente, é o caso de Jesus não crer em Nicodemos. A fé de Jesus nos outros é um tema que se apresenta no evangelho joanino. Considero ser este o cerne do versículo 12: Jesus não acredita no rabi Nicodemos.

A expressão negativa (οὐδεὶς) e sua retificação (εἰ μὴ) criam duas perspectivas opostas. A condicional εἰ em combinação com a partícula negativa μὴ criam uma perspectiva alternativa à da oração anterior. Outra forma possível de interpretar a condicional εἰ μὴ com particípio é seu uso como forma de ecoar que Nicodemos não acredita na vinda ao mundo do Filho do Homem.

2.3 Aspecto-modo

A oração condicional de primeira classe é composta de um indicativo aoristo(εἶπον) e indicativo presente (πιστεύετε). O uso de εἰ indica certa neutralidade epistêmica se comparado com conjunção em outras condicionais como em ἐὰν. A construção εἰ τὰ ἐπίγεια εἶπον ὑμῖν cria postura epistêmica neutra em que Jesus ecoa o discurso anterior de ter falado das coisas terrenas. Já a construção καὶ οὐ πιστεύετε, subentendido εἰ, indica postura epistêmica positiva em que Jesus se compromete com o conteúdo da sentença; ou seja: o conteúdo da sentença se associa com sua visão de mundo. Com isso é acentua a crítica de Jesus a Nicodemos.

A crítica é ainda mais acentuada com o uso da forma distanciada subjuntivo aoristo (εἴπω) e futuro (πιστεύσετε) na condicional de terceira classe. O uso do futuro (πιστεύσετε) tem como significado expressar maior autoridade. O efeito de sentido aqui é de crítica da parte de Jesus. O uso distanciado de subjuntivo aoristo (εἴπω) cria efeito de distanciamento e rejeição a Nicodemos. O subjuntivo aoristo distancia o Jesus do conteúdo da sentença provocando dissociação entre o conteúdo e a visão de mundo do indivíduo. Com subjuntivo cria-se uma situação alternativa à situação imediata a fim de considerar suas possíveis consequências, ações, reações, expectativas etc.

O particípio tem como semântica duas características. Ele é pressuposição factível (ALBUQUERQUE, 2020) e marcador de frame (MARK, 2010). Frame é conhecimento organizado na memória do indivíduo sobre dado aspecto da realidade (e.g, RESTAURANTE evoca um conjunto de ações e expectativas). O particípio evoca o frame DESCER DO CÉU, que faz parte do conhecimento compartilhado entre interlocutores. Este frame é metonímia para divindade. No evangelho de João, o que é divino vem de cima, do céu. Este particípio aoristo articular é usado para interpretar a oração no indicativo perfeito. No evangelho joanino, Jesus desceu do céu como expressão da sua encarnação, ao passo que sua subida ao céu é projetada na expectativa da ressurreição. Há dois eventos: a descida do Filho de Deus (sua encarnação) e sua ascensão (ressureição). Temporalmente, a descida do Filho vem antes de sua ascensão. A descida também evoca o frame  ENVIO DO FILHO AO MUNDO, tema bastante relevante neste evangelho.

O particípio aoristo em João 3.13 cria efeito de sentido de distanciamento social. O sintagma preposicional (ἐκ τοῦ οὐρανοῦ)  é uma metonímia para fazer referência Deus ao expressar o lugar onde Deus reside. Socialmente, os judeus mostram uma deferência pelo nome divino apresentando uma linguagem de distanciamento de sorte a produzir determinados efeitos. O particípio aoristo (καταβάς) no sintagma preposicional cria efeito de distância social ao falar indiretamente de Deus, por essa razão o uso distanciado.

O uso do artigo em combinação com o particípio ὁ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καταβάς traz o sentido de um referente concreto, parte da experiência imediata das pessoas envolvidas na interação. O que cria na mente do leitor/ouvinte que o referente é Deus. Jesus, fazendo isso, usa um nominativo com valor apositivo para explicar quem é aquele que veio do céu, é o Filho do Homem. A inferência é que o Filho do Homem é divino. Sabe-se que Jesus usava esta expressão para fazer referência a si. Logo, Jesus está dizendo que ele é Deus. Toda essa informação é tomada como plano de fundo no sentido de servir de base para interpretar o destaque dado à informação no indicativo perfeito. Por outras palavras, o que é destacado (proeminente, figura, relevância, saliência) é entendido com base no que está colocado como informação de fundo (segundo plano).

O aoristo tem como semântica apresentar uma atenuação da subjetividade com base em distanciamento e generalização projetando no leitor/ouvinte efeitos de sentido de distância social, polidez, neutralidade, sumarização, objetividade no relato de eventos ou situações, informação de plano de fundo. Por outras palavras, há atenuação da presença do sujeito buscando criar no leitor efeito de distanciamento do conteúdo.

A mesclagem entre particípio e aoristo cria o blend pressuposição distanciada. Já a mesclagem entre indicativo e perfeito cria o blend asserção altamente aproximada.

Por sua vez, o perfeito tem como semântica acentuar a presença do sujeito (maior grau de envolvimento) tendo como base aproximação espacial e especificação causando efeitos de sentido no leitor como intensidade (SAUGE, 2000), proeminência (PORTER, 1993), alta proximidade (CAMPBELL, 2007) ou responsabilidade do sujeito (RIJKSBARON, 2019; MCKAY, 1994). Dito de outra forma, há maior aproximação (acentuação, envolvimento) do falante/escritor buscando atrair a atenção do ouvinte/leitor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As orações condicionais de primeira e segunda classes criam perspectivas alternativas da situação a fim de projetarem na interação entre Jesus e Nicodemos relação de distanciamento e crítica. As condicionais não são apenas formas de conceber alternativas à situação imediata. São também formas de interagir com o outros.

O perfeito indicativo salienta maior presença do sujeito (envolvimento) a fim de chamar a atenção de seu interlocutor. Ao usar o particípio aoristo, cria-se um contexto que serve de fundamento para interpretar a asserção no perfeito criando o par teológico de João encarnação/vinda do Filho ao mundo e ascensão/glória no seio do Pai.

A interação entre Jesus e Nicodemos retratada por João apresenta o embate entre rabis, criando a teologia joanina de descida/subida do Filho para destacar a encarnação/glorificação do Filho na sua missão ao mundo. Para isso, o particípio aoristo é usado com alvo de evocar da memória do leitor o conhecimento compartilhado entre os interlocutores (pressuposição).

Referências

ALBUQUERQUE, R. Presupposition and [E]motion: the upgraded function and the semantics of the participle in the New Testament. New York: Peter Lang, 2020.

CAMPBELL, C. Verbal Aspect, the indicative mood, and narrative. New York: Peter Lang, 2007.

MCKAY, K. A New Syntax of the Verb in the New Testament Greek: An Aspectual Approach. New York: Peter Lang, 1994.

MARK, Y. Mark’s Memory Resources, and the Controversy Stories (Mark 2:1-3:6): An Application of the Frame Theory of Cognitive Science to the Markan Oral-Aural Narrative. BRILL: LEIDEN, 2010.

PORTER, S. Verbal Aspect in the Greek of the New Testament, with reference to tense and mood. New York: Peter Lang, 1993.

RIJKBARON, A. Form and Function in Greek Grammar: Linguistic contributions to the study of Greek Literature. Leiden: BRILL, 2019.

SILVA, F. A semântica do aspecto verbal na peça Assembleia de Mulheres. In: POMPEU, A; PREZOTTO, J; ALMEIDA, S; ARAÚJO, O. (Orgs) As mulheres de Aristófanes. Volume 1. São Paulo: Pimenta cultural, 2022. SAUGE, A. Les degrés du verbe: sense et formation du parfait en grec ancien. Berlin : Peter Lang, 2000.


[1] MODO é usado em caixa alta para expressar categoria mais ampla. Modo é usado para designar o indicativo cuja semântica é asserção. Modalidade (imperativo, futuro, subjuntivo e optativo) e modulação (infinitivo e particípio).

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