1. Introdução[1]
Partindo da teoria da relevância, a ironia quer dizer citar a fala ou pensamento de alguém, mas dissociando-se dela, discordando. Essa dissociação do conteúdo alheio é o que configura ironia. Exemplos:
“O Lula é um bom presidente”.
Por um lado, esta frase pode ser o conteúdo da fala de um defensor de Lula ou o pensamento de pessoas que são suas aliadas.
Por outro lado, se a pessoa que diz isso, tem valores conservadores, ela não concorda com esta frase. Mas se este conservador faz esta afirmação, ele o faz para criar efeito irônico.
Indo ao texto grego, o ponto central de discussão é o versículo 8.
καὶ ἐπῄνεσεν ὁ κύριος τὸν οἰκονόμον τῆς ἀδικίας ὅτι φρονίμως ἐποίησεν· ὅτι οἱ υἱοὶ τοῦ αἰῶνος τούτου φρονιμώτεροι ὑπὲρ τοὺς υἱοὺς τοῦ φωτὸς εἰς τὴν γενεὰν τὴν ἑαυτῶν εἰσιν. (Lc 16:8)
“E o senhor elogiou o administrador infiel de que agira sabiamente. Os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz.’” (minha tradução adaptada de ARA)
2. Considerações iniciais
A parábola é destinada a quem? O versículo primeiro mostra-nos isso.
Ἔλεγεν δὲ καὶ πρὸς τοὺς μαθητάς· (Lk. 16:1 BGT)
“Disse Jesus também aos discípulos” (ARA)
Tanto o sintagma nominal (τοὺς μαθητάς, os discípulos) quanto a partícula δὲ sinalizam que a parábola é instrutiva no sentido de ser voltada aos discípulos a fim de saberem quais os valores do reino de Deus. A partícula δὲ tem a função de marcar para o leitor a apresentação de um participantes, no caso, os discípulos.
Algumas questões:
2.1. O referente ὁ κύριος (aparece antes no v.3).
O uso do artigo tem como função indicar que este referente ele foi mencionado anteriormente. E também tem a função de indicar que o referente é identificado pelos leitores. Considerando o início da parábola, ὁ κύριος refere-se ao senhor do administrador infiel e não a Jesus.
2.2. O uso de ὅτι (2x)[2]
Esta partícula serve para sinalizar que determinado conteúdo ou pertence ao pensamento de alguém ou ao conteúdo de uma fala. O primeiro uso dessa partícula sinaliza que a frase é o conteúdo do verbo “louvar” (ἐπῄνεσεν). “E o senhor louvou dizendo que agira fielmente”.
Assim o conteúdo “o administrador infiel agira fielmente” é dito pelo senhor ao passo que Jesus diz o que o senhor havia falado do administrador. Ou seja: Jesus está narrando o conteúdo da fala do senhor. Se entendermos que o senhor era uma pessoa honesta, o uso de ὅτι φρονίμως ἐποίησεν, da sua parte, é uma ironia.
3. O sintagma nominal τὸν οἰκονόμον τῆς ἀδικίας (o administrador infiel) com o genitivo τῆς ἀδικίας tem a função de recategorizar o referente τὸν οἰκονόμον. A construção no genitivo τῆς ἀδικίας pode ser a perspectiva da personagem “o senhor” (ὁ κύριος) ou do narrador, que é Jesus.
O segundo ὅτι é complicado. Não há nenhum verbo antes. Seria ele o conteúdo de ἐπῄνεσεν e assim continua sendo a perspectiva do senhor? Ou ele é o pensamento de Jesus?
Uma outra forma de entender este segundo ὅτι: ele evoca o discurso cultural da sabedoria com as palavras τοὺς υἱοὺς τοῦ φωτὸς (os filhos da luz) e τὴν γενεὰν τὴν ἑαυτῶν (os filhos desta geração). Ou seja: não é necessariamente a visão de Jesus, mas o visão daquela cultura. Desta forma, Jesus estaria citando o discurso corrente da sua cultura, mas sem se associar com ele, de modo que temos uma ironia.
2.3 A linguagem de sabedoria e escatológica
A linguagem de sabedoria parte da noção de ordem cósmica em que os elementos da criação, como os astros, por exemplo, são elementos concretos utilizados para a formação de determinados sentidos virtuais. Os filhos da luz e os filhos desta era formam uma antítese para mostrar aqueles que pertencem a Deus e os que não lhe pertencem, respectivamente (cf. Salmos 1-2). A metáfora da luz é bastante utilizada para representar aqueles que estão no caminho da verdade tendo o Criador da ordem cósmica como o centro da realidade.
A linguagem antitética é a do conceito de ordem em termos de categorias que não devem ser misturadas. Assim a categoria FILHOS DA LUZ não deve ser misturada com a categoria FILHOS DESTA ERA. Na estrutura da realidade, somos colocados diante de escolhas que expressam nossos valores. O administrador infiel fez suas escolhas que o colocaram na categoria de FILHO DESTA ERA.
A ironia de Jesus continua no versículo 9:
Καὶ ἐγὼ ὑμῖν λέγω, ἑαυτοῖς ποιήσατε φίλους ἐκ τοῦ μαμωνᾶ τῆς ἀδικίας, ἵνα ὅταν ἐκλίπῃ δέξωνται ὑμᾶς εἰς τὰς αἰωνίους σκηνάς.
“E eu vos recomendo: das riquezas de origem iníqua fazei amigos; para que, quando aquelas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos.”
Alguns recursos gramaticais e lexicais que expressam ironia:
a. Os usos do aoristo, que serve para marcar linguagem distanciada e assim dissociação. Na minha tese, o aoristo é perspectiva distanciada da cena criando efeitos de sentido (neutralidade, postura epistêmica negativa, não envolvimento, ironia, crítica etc). O uso de aoristo com subjuntivo cria efeito de postura epistêmica negativa em que Jesus se dissocia do conteúdo da sua fala, de modo a constituir ironia.
b. A construção “origem de riqueza iníqua” e “fazer amigos” e “estes amigos estarão no tabernáculo eterno”. Amizade envolve lealdade no mundo antigo. Se meus amigos são iníquos, e estou associado com eles, logo estou associado com a iniquidade. Jesus continua com a linguagem de categorização – com quem você se associa ou se dissocia.
c. A expressão “tabernáculos eternos” é expressão escatológica que marca o destino final dos filhos da luz. Se o injusto anda na iniquidade, ele não estará nos tabernáculos eternos.
Conclusão
O ponto central da parábola precisa ser visto na relação com as parábolas anteriores (15:1-31): a da ovelha perdida, a da moeda perdida e a do filho perdido – em todas há associação a valores financeiros. É preciso ver a relação com a parábola de Lázaro em 16.19-31. Em 16.1-13, o ponto é este: associar-se com os filhos deste mundo para benefício financeiro não faz parte dos valores do reino, a despeito da vantagem financeira.
Uma possível aplicação: o desejo pelo dinheiro (e não o dinheiro em si) revela onde estão nossos valores. Se queremos dinheiro, ainda que desonestamente, não temos os valores do reino internalizados em nossa personalidade.
Outra aplicação: os filhos desta era pensam que sua “sabedoria” lhes concede capacidade para entrar no reino dos céus, o que não é o caso mostrado pela parábola de Lázaro em 16.19-31 (PORTER, 1990).
[1] Estas notas têm como base PORTER, S. The Parable of the Unjust Steward (Luke 16:1-13): IRONY IS THE KEY. In: The Bible in Three Dimensions: Essays in celebration of forty years of Biblical Studies in the University of Sheffield. CLINES, D; FOWL, S; PORTER, S (org.). Sheffield: University of Sheffield, 1990. Além disso, parte da minha tese de doutorado em andamento sobree aspecto verbal e minhas considerações sobre o conceito de ordem cósmica e sabedoria assim como de minhas considerações exegéticas sobre a passagem.
[2] A referência para tratamento desta partícula: SIM, M. Marking Thought and Talk in New Testament Greek: New Light from Linguistics on the Particles ‘hina’ and ‘hoti’. Pickwick Publications, 2011.